A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Incêndios na Assembleia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) deve ouvir hoje (7)
familiares das vítimas do incêndio no Ninho do Urubu, centro de
treinamento do Flamengo, e representantes das diretorias atual e
anterior do time. A sessão ocorrerá às 11h, no Palácio Tiradentes.
A tragédia, que deixou 10 adolescentes mortos e três feridos, completa
um ano amanhã (8) e pode ter novos desdobramentos judiciais a partir
deste mês, com novas ações sendo apresentadas pelo Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ), a Defensoria Pública e a defesa das
famílias das vítimas.
A reparação ao núcleo familiar dos atletas vem sendo tratada na esfera cível, e as responsabilidades sobre o incêndio, na criminal, que depende de novos esclarecimentos pedidos pelo MP-RJ à Polícia Civil.
Oito pessoas haviam sido indiciadas pela polícia por homicídio e tentativa de homicídio com dolo eventual no fim do primeiro semestre do ano passado, antes de o MP pedir investigações adicionais à Polícia Civil, que foram concluídas em agosto. O caso voltou ao MP e continuou até dezembro, quando foram solicitadas à polícia informações sobre fatos novos adicionados ao inquérito.
O prazo para a polícia devolver novamente o caso à promotoria é de 45
dias e acaba neste mês. A partir das provas colhidas e reunidas em 11
volumes de inquérito, o Grupo de Atuação Especializada do Desporto e
Defesa do Torcedor do MP-RJ deve oferecer denúncia criminal à Justiça.
Assim como o MP-RJ, parte das famílias desses adolescentes também havia
decidido aguardar a conclusão do inquérito para entrar na Justiça com
ações individuais contra o Flamengo. Somente uma mãe de vítima processou
o clube até agora.
O incêndio ocorreu durante a noite, no alojamento das categorias de
base, que ficava em contêineres no próprio centro de treinamento. A
maioria dos atletas conseguiu sair com vida, mas morreram naquele dia
Athila Paixão, de 14 anos, Arthur Vinícius de Barros Silva Freitas, de
14 anos, Bernardo Pisetta, de 14 anos, Christian Esmério, de 15 anos,
Gedson Santos, de 14 anos, Jorge Eduardo Santos, de 15 anos, Pablo
Henrique da Silva, de 14 anos, Rykelmo de Souza Vianna, de 16 anos,
Samuel Thomas Rosa, de 15 anos, e Vitor Isaías, de 15 anos.
No processo que corre na 1ª Vara Cível da Barra da Tijuca, o Ministério
Público e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro conseguiram
uma decisão em dezembro que obriga o Flamengo a pagar R$ 10 mil mensais a
cada uma das famílias de mortos ou feridos na tragédia. O Flamengo já
vinha pagando R$ 5 mil às famílias antes da decisão. Segundo o defensor
público Eduardo Chow, do Núcleo de Defesa do Consumidor, a ação em
questão é cautelar, e a defensoria trabalha agora em um pedido
definitivo de reparação, que vai definir um valor indenizatório ao final
do processo. Além do processo coletivo, a defensoria também é
responsável pela defesa da família de Samuel Thomas Rosa.
Defensoria e MP-RJ chegaram a elaborar um modelo coletivo de indenização
logo após a tragédia, propondo valores mínimos para a reparação, que
foram considerados razoáveis pelas famílias na época. A iniciativa teve
como base o programa indenizatório das vítimas do voo 447 da Air France,
que caiu no oceano em 2009, e os órgãos defenderam que o Flamengo
pagasse uma indenização de ao menos R$ 2 milhões a cada um dos núcleos
familiares das vítimas do incêndio. Além disso, deveria pagar uma pensão
mensal de R$ 10 mil a cada uma dessas famílias, até a data em que as
vítimas completem 45 anos.
Acordos
O clube recusou a proposta e partiu para a negociação individual com cada família. Nesse processo, o Flamengo conseguiu fechar acordos de indenização com todos os sobreviventes do incêndio e com as famílias de Athila, Gedson e Vitor Isaias. Além deles, o pai de Rykelmo aceitou a proposta de acordo com o clube, enquanto a mãe decidiu processar o Flamengo. Entre os demais, existe a expectativa de que a conclusão das investigações pode trazer dados novos para as ações. Em alguns casos, os pedidos que serão enviados aos tribunais já estão prontos, somente à espera do encerramento da apuração.
É o que pensa a defesa da família de Pablo, um dos mortos na tragédia. A advogada Mariju Maciel afirma que a proposta do clube foi considerada insuficiente, e que, como não houve espaço para negociar outro acordo, o ajuizamento de ação se tornou a única opção.
“Não há como entender que foi acidente. O Flamengo foi notificado 31 vezes das irregularidades”, argumentou, referindo-se às multas aplicadas pela prefeitura do Rio de Janeiro por problemas no licenciamento do Ninho do Urubu, que não tinha alvará de funcionamento na época. Mariju afirma que a ação que vai propor já está pronta: “Pablo trazia não só o sonho dele, como o de toda uma família. Ele saiu de casa com total segurança e foi entregue ao Flamengo, com o pensamento de que estava sendo entregue a alguém que ia cuidar de um adolescente”.
A advogada conta que a família de Pablo mora em Oliveira, no interior de Minas Gerais, e, segundo ela, todo o dinheiro recebido até agora está sendo gasto com tratamentos psiquiátricos e remédios, já que o pai da vítima, que era motorista, não tem mais condições de trabalhar desde a tragédia.
Quem também já está com o pedido de indenização redigido para levar à
Justiça é Paula Wolff, que responde pela defesa da família de Jorge
Eduardo Santos. A advogada aguardou a conclusão do inquérito até este
ano, mas decidiu que vai propor a ação em fevereiro. “Como já vai para
um ano sem uma finalização, a gente optou por entrar logo de uma vez,
porque o clube deixou claro que não está mais interessado em negociação.
Querem as coisas nos termos deles”.
A mesma decisão foi tomada por Arley Carvalho, advogado da família de
Christian Esmério, que também deve protocolar a ação neste mês. “A gente
esperava uma celeridade maior [nas investigações], devido à proporção
do caso e por se tratar de crianças. Agora, a gente optou por não
esperar mais”, disse ele, acrescentando que o seu último contato com o
Flamengo foi em agosto.
Flamengo reconhece responsabilidade
Em vídeo publicado no último sábado (2) em suas redes sociais, o
Flamengo classifica a tragédia como a maior da história do clube e
afirma reconhecer sua responsabilidade, independentemente de culpa.
“Para nós do Flamengo, nos aparenta ter sido um lamentável acidente, mas
temos responsabilidade como guardiões dos adolescentes”, disse o
vice-presidente geral e jurídico do Flamengo, Rodrigo Dunshee de
Abranches. No vídeo, além de Dunshee, o presidente do Flamengo, Rodolfo
Landim, e o CEO, Reinaldo Belotti, respondem a perguntas de uma
jornalista da equipe de comunicação do clube durante cerca de 28
minutos. Rodolfo Landim contou na entrevista que pretende homenagear as
vítimas do incêndio com uma área dedicada a eles na futura capela de São
Judas Tadeu, padroeiro do clube, que será construída no Ninho do Urubu.
Sobre a indenização, os dirigentes do Flamengo afirmam que o valor
aceito nos quatro acordos já firmados é o teto, estabelecido em
conversas internas. “Entendemos ser muito alto e muito acima dos
precedentes da Justiça brasileira. Esse valor não levou em consideração
quesitos como a estatística de que esses meninos dificilmente,
percentualmente, chegariam a ser titulares do Clube de Regatas do
Flamengo”, disse Dunshee, que afirma que o clube está tentando adequar a
proposta às necessidades das famílias e está aberto à negociação, mas
não pode dar tratamento diferente em relação às famílias que já
aceitaram o acordo. “É a nossa oferta. A gente tem um limite”.
Outra informação confirmada pelo Flamengo no vídeo publicado é que
alguns sobreviventes da tragédia já foram dispensados das categorias de
base do clube. Segundo Landim, o critério para a dispensa foi técnico.
“Esse critério foi pura e simplesmente técnico, da área técnica do
clube, na qual eu não vou intervir, porque não é o meu papel. Acho que
eles estão livres, a partir desse momento, para procurar outros clubes
para jogar. A gente até espera que eles tenham sucesso na vida
profissional, se eles resolverem seguir a carreira. Ou então que busquem
outra atividade. A gente entende que, ao sair daqui, eles saem muito
mais preparados para a vida do que quando chegaram”.
O clube também afirmou que, às vezes, suas tentativas de contato com as
famílias vêm sendo barradas pelas defesas. Os advogados ouvidos pela Agência Brasil contestam essa versão e afirmam que o clube não tentou contato com seus clientes.
‘Meu filho já era uma realidade’
O pai de Christian Esmério, Christiano de Oliveira, de 40 anos, também questiona a alegação de que as chances de seu filho se tornar profissional eram pequenas. Segundo o pai do atleta e o advogado que representa a família, Christian estava prestes a assinar seu primeiro contrato profissional, com uma reunião marcada para a semana seguinte ao incêndio.
“O meu filho não era promessa do Flamengo mais. O Flamengo já tinha
ele como uma realidade. Um garoto de 15 anos que foi Seleção sub-15 e
sub-17, foi três anos titular no Flamengo, campeão na base”, lembra o
pai do adolescente, que tinha quatro irmãos.
Flamenguista, Christiano conta que não tem mais a mesma paixão pelo
clube e relata que sua família e as outras vêm sofrendo muito com
acusações de oportunismo por parte de uma minoria de torcedores.
“Com certeza, essa pequena minoria que fala coisas sem sentido machuca, e
ninguém sabe a dor de um pai que perde um filho. Não desejo isso para
nenhum deles, que acabam sendo muito emotivos por ser flamenguistas,
acabam falando besteira. Isso dói muito”, diz ele, que conta sofrer mais
pelo fato de sua família ser do Rio. “É o Flamengo que tem que
responder pelo erro que cometeu com nossas crianças. Agora, a gente
acabar sendo julgado, sendo chamado de oportunista e que queremos
enriquecer por meio da morte dos nossos filhos? Isso não tem lógica”.
Para o autônomo, o primeiro ano sem Christian será igual a todos os
outros que viverá daqui para a frente. “Não vai ter um ano em que não
vou ter saudade do meu filho. Até o final da minha vida vou estar
sofrendo, com o coração despedaçado. Não é porque vai fazer um ano, mas
por toda a minha vida”.
*Colaboraram as repórteres Akemi Nitahara e Lígia Souto