Às vezes, ele tem vontade de dar um abraço ou um “cheiro” na mãe, mas Joseildo sabe que não pode. Por causa do coronavírus e porque não tem dinheiro para alugar um quarto, o técnico em enfermagem passou a dormir no terraço da casa, revezando entre um colchão no chão gelado e uma rede. Ele tem medo de contagiar a mãe, de 74 anos, que tem asma, pressão alta e, há um mês, sofreu um infarto.

“Quando soube que poderia transmitir para ela, pensei: ‘para onde eu vou?’ Com o salário que a gente ganha, não dá para alugar um quartinho. Eu não quero, casa, hotel, só quero um quarto para poder ficar tranquilo e exercer minha profissão sem medo de machucar a minha mãe, meu bem maior”, diz Joseildo da Silva Batista, de 33 anos, que trabalha em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em Campina Grande, na Paraíba.

Pelo trabalho de 13 plantões mensais de 12 horas (divididos entre seis de 24 horas e um de 12), ele recebe o salário mínimo: R$ 1.045, ou R$ 946 líquidos. Ou seja, R$ 80 por cada plantão de 12 horas.Usa o dinheiro para pagar pensão para o filho de sete anos e ajudar a mãe em casa, onde moram também duas irmãs e duas sobrinhas. Antes, ele, a mãe e uma irmã dormiam no mesmo quarto, por falta de espaço na casa. Agora, diz passar um pouco de frio no terraço – Campina Grande fica na serra – mas nada que o impeça de “seguir a vida”.A Secretaria de Saúde de Campina Grande informou, nesta sexta (10), que disponibilizou hospedagem para profissionais de saúde que precisem ficar isolados de familiares, incluindo Joseildo, em um hotel da cidade.

Joseildo trabalha na linha de frente: casos suspeitos chegam na UPA e depois são encaminhados ao hospital. Em Campina, há três casos confirmados até agora. Em todo o Estado da Paraíba, eram 85 até esta sexta (10).

Como Joseildo, profissionais de enfermagem de todo o país recebem salários baixos para trabalhar longas horas e exercer um trabalho fundamental na linha de frente ao combate desta pandemia. De todos os profissionais de saúde, eles são os que mais têm contato com pacientes com covid-19, a doença causada pelo vírus.Muitos têm trabalhado sem equipamento de proteção necessário, como máscaras de proteção, luvas e aventais adequados, escasso em diversos hospitais públicos e privados pelo Brasil. Expostos, estão praticamente arriscando a vida. O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) já contabiliza 17 mortes de profissionais de enfermagem no Brasil que tiveram suspeita ou confirmação de covid-19.

Por causa dos salários baixos, grande parte dos profissionais acumula mais de um emprego – às vezes um no setor público e outro no privado, segundo Manoel Neri, presidente do Cofen. “É uma sobrecarga muito grande que pode interferir na qualidade de assistência e que leva à falta de tempo para se aperfeiçoar e para estar com a família”, diz. Há casos de concursos para técnicos de enfermagem oferecendo salário mínimo, como no caso de Joseildo, ou até menos que isso. A categoria não tem piso salarial.Na Alemanha, enfermeiros agradeceram as rodadas de aplausos da população durante esta pandemia do coronavírus, mas reivindicaram também aumento salarial. Um abaixo-assinado com o pedido angariou 350 mil assinaturas até o final de março, segundo reportagem da Deutsche Welle.

No Brasil, profissionais de saúde desabafam nas redes sociais sobre a desproporção entre o risco que correm e o salário que recebem: “os aplausos são lindos, mas reconhecimento poderia vir um pouco no salário também, afinal, todos precisamos para viver”, comentou uma enfermeira em uma postagem com a história de Joseildo.Em outra publicação, uma enfermeira reclamava de ter recebido a oferta para fazer plantões de triagem de pacientes com sintomas de covid-19. Por plantões de 12 horas, receberia R$ 80, o mesmo valor que Joseildo recebe. “Homenagens batendo palmas na janela não pagam nossos boletos, o sustento dos nossos filhos. Estudamos demais para isso”, desabafou.

Leito do paciente

Hoje, o Brasil tem um total de 2,2 milhões de profissionais da área, entre enfermeiros, técnicos em enfermagem, auxiliares de enfermagem e obstetrizes. Uma pesquisa conduzida pelo Cofen e a Fiocruz em 2014 mostrou que 10% desses profissionais estavam desempregados.

A pesquisa também traçou um perfil dos profissionais de enfermagem do Brasil: são mulheres, em sua maioria (85,1%), com crescente aumento de participação masculina. A maioria dos profissionais são pretos ou pardos (53%), seguido de brancos (41,5%). Há uma concentração de profissionais na região Sudeste, enquanto Norte e Nordeste sofrem com uma carência deles.

Segundo a pesquisa, 17,8% da categoria recebiam “subsalários”, ou menos de R$ 1 mil mensais na época do estudo, produzido em 2016 com dados de 2014.Para Neri, a renda dos profissionais de enfermagem deveria levar em conta fatores como o risco, “não só agora em período de pandemia”. “Não só o trabalho insalubre, como o penoso. O profissional trabalha em plantões noturnos, no fim de semana, feriados. Muitos trabalham em plantões de até 24 horas seguidas”, observa.

Ele diz que os profissionais também têm “uma grande importância social para a saúde” porque “são os que ficam na cabeceira do leito do paciente durante 24 horas para fazer seus cuidados – desde os mais simples, como o banho -, até os de alta complexidade, na UTI”.A pesquisa do Cofen e da Fiocruz também registrou que 64,2% dos auxiliares e técnicos consideravam sua atividade desgastante.”A enfermagem recebe muito pouco pela responsabilidade que temos, nossas habilidades, nossa formação e a dedicação que temos em relação aos nossos pacientes. É uma sobrecarga para uma remuneração muito pequena”, diz Bruna Costa, 30, coordenadora de plantão em uma unidade básica de saúde em Bom Jesus do Amparo, Minas Gerais.”Às vezes, deixamos de comer, de ir ao banheiro, e 12 horas acaba sendo pouco para o tanto de serviço que temos para fazer. Não paramos em nenhum momento para dar conta de tudo o que está acontecendo. Nós gerenciamos a unidade, cuidamos dos pacientes. Se tem pia quebrada, teto pingando, é a enfermagem que tem que resolver.”Marcelo, enfermeiro que trabalha na região do Vale do São Francisco, trabalha em dois locais. No setor privado, recebe R$ 2 mil, trabalhando 144 horas mensais. Na rede pública, R$ 2.600, trabalhando mais 156 horas mensais.Agora, afastado por apresentar sintomas da covid-19 após trabalhar sem equipamento de proteção adequado, não recebeu auxílio de nenhuma das unidades de saúde para fazer o teste e saber se está com a doença. Tirou dinheiro do próprio bolso para pagar um exame e saber quando poderá voltar ao trabalho. Seu nome foi modificado para proteger sua identidade.

Joseildo, o técnico em enfermagem forçado a dormir no terraço de casa para não contaminar a mãe, também tem que fazer bicos para complementar a renda. Trabalhava às vezes como segurança, mas, com a pandemia, já não pode mais.A boa notícia, contudo, é que, poucas horas depois de compartilhar seu drama em um comentário no Instagram, recebeu ajuda. Uma empresa de vaquinha online viu o pedido e ofereceu divulgá-lo. Em só dois dias, foram arrecadados R$ 34 mil.

“Eu não quero para mim. Tirando o dinheiro para alugar um quartinho, vou fazer doações na minha cidade, porque tem muita gente precisando, e as pessoas vão passar por dificuldades. Já que estou sendo agraciado, tenho que agraciar mais pessoas”, diz.

O que ele gostaria, no entanto, é que os profissionais de enfermagem fossem mais valorizados. “Recebo praticamente menos do que o salário mínimo. Não digo que é constrangedor porque não trabalho pelo dinheiro. É por amor. Mas a gente está na linha de frente o ano todo, estamos lidando com a vida e a morte das pessoas. Os governantes poderiam olhar para nós com um olhar diferente.”

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