“Você prefere ser operado por um médico que dissecou um cadáver ou por aquele que apenas estudou em peças sintéticas?”

O questionamento feito por Erivan Façanha, professor de Anatomia na Universidade Federal do Ceará (UFC), tem por trás uma realidade compartilhada por muitas instituições com cursos de Medicina do Brasil: a escassez de cadáveres para ensino e pesquisa.

Esse é um problema crônico que prejudica o aprendizado dos alunos em boa parte das melhores universidades do país, como mostra um levantamento feito pela BBC News Brasil.

Foram procuradas as 30 universidades mais bem avaliadas no ranking Universitário da Folha (RUF) 2019 – a edição mais recente. Todas são públicas.

Esse ranking foi escolhido em vez da avaliação dos cursos feita pelo Ministério da Educação (MEC), que avalia as instituições com base no desempenho dos alunos por meio de uma prova) porque algumas universidades, como é o caso da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, optam por não fazer o exame.

Além disso, o RUF avalia as universidades de forma mais ampla, com base em cinco aspectos: pesquisa, ensino, mercado, internacionalização e inovação.

No total, 26 responderam à consulta sobre se cadáveres são usados nas aulas e de qual forma, e também se o número de exemplares disponíveis é suficiente.

Mais da metade delas, 17 ao todo, afirmaram que enfrentam uma falta de corpos para estudo e pesquisa, e apenas duas disseram que a quantidade de cadáveres que têm à disposição é satisfatória.

Outras sete relataram que não têm esse problema porque ainda estão montando um programa de anatomia ou porque a própria instituição não teria condições de mantê-los em boas condições para uso.

O ensino de anatomia na prática, cortando camadas, identificando estruturas e órgãos em um cadáver, é uma experiência considerada insubstituível por professores e médicos experientes.

Mas é algo difícil de ser feito nas universidades de Medicina brasileiras.

A maioria das instituições consultadas relata que faltam corpos suficientes para dissecação há anos e que o problema é difícil de solucionar, porque faltam recursos para preservar os cadáveres e, principalmente, doações pela sociedade civil – uma prática que ainda é pouco difundida no Brasil.

“Alguns alunos optam, inclusive, por cursos fora do país buscando essa opção. Estados Unidos e Canadá são alguns dos destinos mais procurados”, diz Kennedy Martinez de Oliveira, professor de anatomia humana da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Quando não há cadáveres suficientes para a dissecção, professores buscam as opções mais próximas para oferecer uma experiência mais fiel nas aulas de anatomia.

“A prática de dissecação, que é primordial para a anatomia topográfica, fica deficitária em nossas aulas. Temos alguns modelos sintéticos e usamos peças cadavéricas”, diz Célia Regina de Godoy Gomes, professora de Anatomia Humana do Departamento de Ciências Morfológicas da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Por que faltam cadáveres?

Cadáveres não reclamados por famílias de uma pessoa morta em até 30 dias depois do óbito eram no passado a forma mais comum de doação para uso de corpos no ensino e pesquisa. Isso supria as necessidades de boa parte das instituições.

Hoje, já não é mais tão comum ter corpos não reclamados, explica Daniel Martinez Sae, professor do departamento de Medicina da Universidade Federal de Lavras (UFLA), uma das universidades que relatam ter poucos cadáveres à disposição dos alunos.

Sae diz que isso ocorre porque novas tecnologias ajudam atualmente na identificação dos corpos por familiares.

Na cidade de São Paulo, por exemplo, o Serviço Funerário do Município e o Instituto Médico Legal (IML) enviam uma lista de corpos não identificados ao Diário Oficial municipal, que pode ser consultado pela internet.

Há também uma página online do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID), banco nacional que que sistematiza dados a polícia, do IML e de boletins de ocorrência, contribuindo para localização e identificação de pessoas.

A imprensa e as redes sociais também acabam ampliando o alcance dessas publicações e ajudando para que cheguem a familiares dos mortos.

Outro ponto, segundo Sae, que levou a um uso menos frequente destes cadáveres é que os trâmites burocráticos para sua liberação para as instituições de ensino são demorados, e o tempo é um fator importante para que os corpos possam ser devidamente preparados e conservados.

“Por fim, existe uma tendência mundial de não recebimento de corpos por essa via, sendo já proibido em alguns países, por uma questão ética”, afirma Sae.

No Brasil, a lei 8.501, de 1992, prevê que, seguindo uma série de trâmites legais, estes corpos podem ser destinados para universidades públicas.

Algumas instituições, seguindo a legislação, têm parcerias com a polícia e instituições como o IML, que existe em diferentes Estados e municípios do Brasil e é responsável por realizar exames e perícias médico-legais.

A lei não permite a doação do corpo em casos de suicídio ou quando a causa da morte é violenta, porque levar o corpo para o laboratório poderia destruir provas de um crime.

“Essa lei ainda está em vigor, mas a questão ética tem se sobressaído”, avalia o professor da UFLA.

Fonte: G1

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